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Ladrões de vitalidade: Gula

Creio não ser difícil concluir que a gula é um dos pecados mais banalizados e ignorados no contexto cristão brasileiro. Se formos analisar, existem vários pecados aceitáveis no nosso meio, mas parece que a gula é o que acumula a maior quantidade de características: não afasta pessoas de nós, não leva à disciplina eclesiástica, é motivo constante de piadas e frases de conformismo e é praticado abertamente até mesmo no meio de irmãos. Até pensei em dizer que é culturalmente aceito, mas neste ponto, entendo que até mesmo o mundo já vê com mais gravidade a questão do que nós, cristãos. A questão que se levanta, então, é: Por que somos tão displicentes em relação a este pecado em particular? Imagino que muito disso se deva ao caráter aparentemente inocente dele, visto que “não ofende ninguém” e “não nos afasta de Deus”. Porém, essa aparência é falsa, e precisamos enxergar a gula como ela realmente é: um pecado (Gálatas 5.21). Dessa forma, devemos refletir e corrigir o que pensamos sobre o assunto.


Buscando uma percepção correta da gula

Primeiramente, precisamos corrigir nossa percepção de gula. Este não é um pecado apenas cometido por quem está acima do peso. Na verdade, quando lemos Números 11, vemos que os israelitas pecaram por gula simplesmente por murmurarem por não terem um tipo de comida. Portanto, trata-se de uma questão de idolatria pela comida e não simplesmente de se comer em demasia. Ou seja, não podemos avaliar se estamos sendo gulosos simplesmente por estarmos sofrendo consequências desse pecado (engordando, tendo doenças gastrointestinais ou transtornos alimentares), e sim pela nossa resposta à presença ou falta de comida. Estamos murmurando por não ter um tipo específico de comida? Estamos buscando consolo na comida? Estamos comendo além do necessário (independentemente do nosso peso)? Em todos esses casos, a comida é posta no lugar de Deus em algum nível, sendo, portanto, idolatrada.


Entendendo a dimensão das consequências da gula

Quando pensamos nesse ponto, logo vamos para o aspecto estético. Esse, talvez, nos incomoda mais, porque nos afeta mais diretamente e visualmente. Porém, se analisamos novamente o episódio de Números 11, vemos que a gravidade do pecado foi tamanha que levou Deus a punir severamente as pessoas com a morte (Números 11.34). Portanto, não podemos tratá-la com leviandade e minimizar seu impacto. Gula é idolatria, e como qualquer outro ídolo, nos afasta de Deus e rouba a nossa vitalidade espiritual. Para entender melhor como isso pode acontecer, abordarei três aspectos:


1. A questão do domínio próprio

A gula, normalmente, está associada com a falta de domínio próprio e, portanto, como vemos em 2 Pedro 1.3–9, estaria relacionada com problemas de crescimento espiritual. Nesse sentido, episódios de gula vêm como uma evidência de problemas espirituais. Além disso, pensemos em outros pecados relacionados à falta de domínio próprio na nossa vida (normalmente são pecados de repetição). Conseguimos estabelecer uma semelhança com a gula? Sem domínio próprio, quando estamos passando por situações difíceis ficamos mais suscetíveis a repeti-lo, não é mesmo? Além disso, à medida que vamos nos acostumando com um padrão de pecado, ele se torna cada vez mais normal, certo? Portanto, se estamos tendo fracassos de domínio próprio no campo da gula, será que estamos sendo bem-sucedidos em ter domínio próprio nas demais áreas? Precisamos ter a convicção de que esses pecados andam juntos, e não devemos nos acomodar.


2. A questão do consolo errado

Em segundo lugar, pensemos nas vezes em que estamos comendo como uma forma de consolo para dificuldades, ao invés de buscar consolo em Deus. Sempre que substituímos Deus por outra coisa, estamos adorando essa coisa. Se procuramos a comida para aliviar o estresse, passar a tristeza, “curar” a ansiedade, a comida se tornou o deus a quem recorremos nos momentos de angústia, e esse deus não vai trazer a restauração de que precisamos. Por isso, a nossa constante perda de vitalidade espiritual.


3. A questão da mordomia

Por último, vamos pensar em um aspecto que está relacionado não com a motivação em si para a gula, mas com suas consequências. Normalmente, a gula afeta a nossa saúde, nos deixando mais cansados e fracos. Se nós não temos disposição física devida, nosso serviço cristão é afetado e o corpo de Cristo sofre (1 Coríntios 12.26). Deus nos resgatou para sermos úteis no corpo de Cristo (Efésios 4.11–16) e, portanto, isso é essencial para nossa edificação rumo a uma vida espiritual saudável. Precisamos ser bons mordomos dos recursos que Deus nos deu, e o nosso corpo é um deles. Outro aspecto de mordomia nessa área é a questão dos recursos financeiros. Estamos fazendo bom uso dos recursos que temos na compra de comida? Será que a quantidade e/ou o padrão de comida que comemos tem servido mais ao deus da gula do que ao Reino de Deus? Priorizar o Reino de Deus tem implicações práticas em diversas áreas, e esta é uma delas.


Procurando a forma correta de lutar

Infelizmente, mesmo quando tomamos o propósito de fazer alguma coisa a respeito, nossa luta, normalmente, não é contra o pecado e sim contra o peso. Nós não queremos glorificar a Deus com o que comemos, e sim queremos ter uma estética satisfatória ou uma saúde melhor. Focamos no resultado e não na fidelidade a Deus. Queremos dietas radicais contando com fórmulas e receitas “mágicas” e não uma obediência radical contando com a graça de Deus. Certamente, precisaremos adotar medidas práticas e científicas para cuidar da nossa saúde, mas na nossa luta contra o pecado as armas são espirituais. Como qualquer outro pecado, é necessário começar por reconhecimento e arrependimento. Precisamos, então, nos despojar dos velhos hábitos e nos revestir de bons hábitos que substituam os velhos ativamente (Efésios 4.22–24).


Neste ponto é importante ressaltar não só a luta individual, mas o nosso papel coletivo. Como igreja podemos evoluir no sentido de não mais tratar a gula como um “pecado aceitável”, mas sim como um pecado. Isso não significa uma “caça às bruxas” e sim um tratamento amoroso como deve ser feito com qualquer outro pecado, criando-se um ambiente de graça no qual as pessoas não se sintam nem acomodadas com o pecado nem com medo de compartilharem suas dificuldades. Isso deve refletir tanto na forma como falamos do assunto quanto na forma como vivemos em comunidade: a gula não pode ser motivo de brincadeira e certamente não deve ter lugar quando nos reunimos como corpo.


Que Deus nos abençoe nesse propósito de fazer tudo para a glória dEle!


Editorial de Tássio Cortês Cavalcante


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