As estatísticas são assustadoras. Uma em cada dez crianças sofre algum tipo de abuso antes de completar 18 anos de idade. Aproximadamente 20% dessas vítimas foram abusadas antes de completar 8 anos de idade, e cerca de 60% das vítimas nunca falaram nada sobre o evento. Além da quantidade alarmante de pessoas que foram vítimas de abuso e que têm sofrido caladas, uma outra informação nos espanta: em 90% dos casos, o abusador é alguém próximo e conhecido da vítima. Estudos mostram que em 60% dos casos, o abusador é alguém que tem a confiança da família, e em 30% dos casos, o abusador é um membro da família.[1]
O problema é real — muito mais real do que imaginamos. É bem possível que vivamos ao lado de pessoas que foram vítimas de abuso, inclusive dentro de igrejas. É provável que mulheres e homens que servem conosco estejam lutando sozinhos contra experiências terríveis de suas infâncias. Tristemente, não estamos livres da possibilidade de passarmos por essa situação, seja com nossos próprios filhos ou com as crianças de nossas igrejas. Não falamos isso para aterrorizar ninguém; mas há um enorme elefante branco na sala, e precisamos falar sobre ele. Deixar de falar não é a solução. Muito pelo contrário. Nós, como igreja de Cristo, precisamos estar preparados para proteger nossas crianças, e para cuidar daqueles que, dentro do plano soberano de Deus, sofreram alguma forma de abuso.
O que é abuso?
Antes de propormos uma ajuda, é importante definirmos o que é abuso. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (1999), abuso é qualquer atitude que coloque em perigo o desenvolvimento de uma criança. Isso inclui contato físico, linguagem imprópria/sugestiva, exposição a imagens impróprias, olhares inapropriados/sugestivos.
De acordo com Greg Gifford, “abuso implica violência física (Atos 16.19), ameaças de violência física (Efésios 6.9), perseguição (Mateus 5.44), maus tratos sexuais (Juízes 19.25), insultos (Lucas 6.28; I Pedro 2.23), falar mal (Tiago 4.11), ou estar sob o poder mal exercido de outra pessoa ou grupo de pessoas (Gênesis 16.6; 1 Samuel 2.16; Esdras 5.12)”.[2]
Quais são os sinais comuns?
Embora pessoas diferentes reajam de formas diferentes ao abuso, alguns sinais são mais comuns, e nos ajudam a identificar e cuidar das vítimas. Mudança repentina de comportamento, principalmente excesso de agressividade repentina, é um dos sinais. Além disso, vítimas de abuso tendem a ser pessoas inseguras e extremamente fechadas, que demonstram falta de vontade de socializar. Um outro sinal bastante comum é o comportamento sexual extremado. Pessoas que sofreram abuso podem tentar usar o seu corpo para exercer algum tipo de domínio sobre outras pessoas, pelo fato de terem sido dominadas de alguma maneira sem o seu consentimento. Por último, também é comum que essas pessoas tenham dificuldades para dormir e excesso de pesadelos, principalmente relacionados à perseguição ou ao próprio abuso.[3]
Como proteger nossas crianças?
Por mais desconfortável ou difícil que pareça conversar sobre o assunto, não existe outro caminho. Se as nossas crianças não sabem o que é certo, elas não vão saber quando algo estiver errado. Ensine-as a visão apropriada (bíblica) sobre sexo, sexualidade e o corpo. Não espere que elas apareçam com perguntas — ajude-as a terem as respostas para os questionamentos que elas certamente terão ao lidar com outras crianças, principalmente em ambientes “seculares”. Instrua as crianças a respeitarem o corpo delas e o corpo dos outros. Diga a elas para não tocarem nas partes íntimas dos outros, para não permitirem que toquem em suas partes íntimas, e para não conversarem sobre assuntos relacionados que deixem as pessoas em situação desconfortável, e principalmente que não agradem a Deus (Efésios 5.3, 4).
Outra prática importante é incutir nelas a capacidade de conversar sobre temas difíceis sem medo, vergonha ou constrangimento. Cultive um ambiente seguro e aberto, onde elas se sintam à vontade para perguntar e falar sobre o que tem acontecido na vida delas. Quando não estiver por perto, mostre a quem procurar caso aconteça algo estranho. No entanto, lembre-as de que há limites na obediência as outras pessoas. A palavra dos pais deve ser a última palavra, e as crianças precisam ter segurança para dizer não às coisas que vão contra o que seus pais lhe disseram.[4]
Como aconselhar os que sofrem?
Mesmo tendo tomado todo o cuidado, não podemos garantir que nunca irá acontecer algo. Infelizmente, não temos o controle de todas as coisas que acontecem aos nossos filhos ou as crianças que amamos. Ainda assim, mesmo sendo um cenário terrível, a Palavra de Deus nos dá respostas para consolarmos e encorajarmos pessoas que sofreram algum tipo de abuso. De forma geral, a restauração e recuperação do coração dos envolvidos envolverá um processo longo de aprendizado das verdades da Palavra de Deus. No restante do artigo, olharemos para sete verdades importantes ao aconselhar vítimas de abuso.
É importante afirmar que o abuso infantil não foi culpa da vítima, e que em Cristo temos uma nova identidade. Embora o abuso seja algo que marque a vida de alguém, não deve ser o que a define. Em Cristo fomos perdoados, adotados, redimidos, selados com o Espírito Santo — a nova identidade que temos em Cristo é o que deve nos definir (Efésios 1.3–14). Essas verdades precisam inundar o coração daqueles que sofrem. Nossas circunstâncias e emoções costumam ser inconstantes e passageiras, mas as verdades da Palavra e o sacrifício de Cristo são definitivos, constantes, e nos garantem bênçãos para toda a eternidade.
Nossas experiências não devem moldar nosso entendimento sobre Deus. Pais abusivos, experiências traumáticas, falta de cuidado por parte daqueles que deveriam nos proteger... essas situações não significam que Deus não é um bom Pai, que Ele não cuida dos seus filhos, nem que Ele não sabe o que é melhor para cada um de nós. Precisamos nos agarrar ao caráter de Deus, que é um Pai bondoso, amoroso, soberano sobre todas as coisas e que trará justiça plena no futuro. Partindo do caráter imutável e perfeito de Deus, conseguiremos enxergar as situações com a perspectiva correta. O sofrimento é real e intenso, mas o que precisa nos guiar é a compreensão correta de quem Deus é — e Ele não muda!
Deus nos ouve, e Ele está conosco. Não colocar os seus sofrimentos diante de Deus fará com que você continue preso nos seus sentimentos, nutrindo amargura e desesperança. Os Salmos 55 a 57 nos mostram um cenário muito interessante. Davi diz que havia sido traído por um amigo. Alguém que deveria fazer o bem a ele, agora estava agindo contra ele. Diante disso, Davi coloca diante de Deus seus sentimentos — ele ficou com medo, preocupado, perturbado. No entanto, a ênfase desses Salmos não está no sentimento de Davi, mas no caráter de Deus, que o levou a agir de acordo com a vontade do Senhor, confiando que Deus agiria em seu favor. Davi, então, termina o conjunto de Salmos dizendo: “Render-te-ei graças entre os povos; cantar-te-ei louvores entre as nações. Pois a tua misericórdia se eleva até aos céus, e a tua fidelidade, até às nuvens. Sê exaltado, ó Deus, acima dos céus; e em toda a terra esplenda a tua glória” (Salmo 57.9-11).
Precisamos aprender — e ensinar pessoas — a lidar com as emoções. É fácil e natural deixar que nossos sentimentos determinem nossa realidade e impactem nossas decisões, tornando difícil viver a vida estável e biblicamente sábia para a qual fomos chamados como filhos de Deus. Não temos controle sobre o que acontece conosco, mas temos uma escolha em como reagimos às circunstâncias. Num histórico longo e triste de abuso, a experiência de abandono é comum. Os sentimentos de que “ninguém se importa” ou “que Deus não se importa” são presentes e, quando persistentes, levam à apatia e até mesmo ao cinismo. Porém, o Deus que encontramos na Bíblia é diferente. Ele se importa. A compaixão de Jesus é perfeita porque Ele sofreu como nós, mas sem pecado, para que encontremos graça e misericórdia em ocasião oportuna (Hebreus 4.14-16). Para ouvir mais das promessas de Deus e crescer na percepção do amor de Deus, você precisa de pessoas que caminhem com você, que orem com você, que amem você e mostrem o amor de Cristo a você. E você precisa servir pessoas, amar pessoas, confiar em pessoas, crescendo numa vida além de si mesmo.
Não há recuperação sem perdão. Alguém que não perdoa ficará constantemente remoendo o que aconteceu, questionando o caráter de Deus, sendo incapaz de amar outras pessoas. E alguém que não perdoa é alguém que não entendeu corretamente o perdão de Deus (Mateus 18.23–35).
A morte de Jesus grita o amor de Deus por nós. Independentemente de como alguém tenha nos tratado, Deus enviou o seu único Filho para morrer na cruz por nós e ressuscitar ao terceiro dia. Nenhuma circunstância é capaz de mudar o amor de Deus por nós.
O processo de restauração pode ser longo (e normalmente será), mas há esperança. O apóstolo Paulo, na sua segunda carta à igreja de Corinto, diz o seguinte: “Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai de misericórdias e Deus de toda consolação! É ele que nos conforta em toda a nossa tribulação, para podermos consolar os que estiverem em qualquer angústia, com a consolação com que nós mesmos somos contemplados por Deus. Porque, assim como os sofrimentos de Cristo se manifestam em grande medida a nosso favor, assim também a nossa consolação transborda por meio de Cristo” (2 Coríntios 1.3–5). Buscar o consolo de Deus em meio à tribulação fará com que a luz de Deus brilhe intensamente em um mundo sedento e em trevas.
Editorial de Gustavo Henrique Santos
[1] Estatísticas retiradas dos sites https://americanspcc.org/child-abuse-statistics/ e https://www.childhelp.org/child-abuse-statistics/.
[2] Greg Gifford, “A Biblical Definition of Abuse,” Biblical Counseling Coalition, 14 January 2019, https://www.biblicalcounselingcoalition.org/2019/01/14/a-biblical-definition-of-abuse/.
[3] Essas são descrições de observações comuns em pessoas que sofreram abuso em sua infância. Porém, não é verdade que todas as pessoas que sofreram abuso respondem da mesma forma ou que pessoas que apresentam essas características foram necessariamente abusadas.
[4] Julie Lowe, “Help Protect Your Kids from Sexual Abuse,” CCEF, 29 April 2019, https://www.ccef.org/five-ways-to-help-protect-your-kids-from-sexual-abuse/.
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