Fidelidade talvez seja uma das virtudes menos populares nos nossos dias. Nesses tempos em que a busca pela felicidade justifica qualquer ação, incluindo aquelas que eram reprovadas poucas décadas atrás (como o abandono de uma família por algo que supostamente irá trazer mais satisfação), trazer tal tema à tona pode trazer desconforto a muitos. Fidelidade, por definição, está ligada à lealdade e zelo, mas tem dois aspectos essenciais. O primeiro é a continuidade: fidelidade pressupõe uma lealdade por um longo período de tempo; de fato, se pararmos para pensar, fidelidade só é real se não tiver fim, e a quebra da lealdade em qualquer momento só revela que não existe fidelidade. O segundo, tão importante quanto, é que fidelidade exige um objeto, alguém (ou algo) a quem ser fiel. Então, ao vermos a afirmação “Deus é fiel” em adesivos de carros espalhados pela cidade, algumas coisas devem passar pela nossa mente. Qual o objeto dessa fidelidade? O que isso implica na nossa vida como discípulos?
Deus é fiel. Fiel a quem?
Os conhecedores do antigo hino de Thomas Chisholm já responderão com o fim do refrão: “Fiel a mim!”. Mas não podemos chegar a essa conclusão de maneira tão direta. No Antigo Testamento, vemos um padrão recorrente: Deus promete, e cada uma das Suas palavras se torna realidade. Isso é visto indiretamente na Criação, em Gênesis 1 (Deus ordena, e o mundo se forma a partir das Suas palavras), mas de maneira direta em todos os Seus relacionamentos com o homem. Deus promete um filho a Abraão em Gênesis 18.10, e cumpre Sua promessa em Gênesis 21.2, apesar da velhice do casal. Ao mesmo Abraão, Deus promete que sua descendência seria oprimida numa terra estranha por 400 anos, mas que sairia de lá com muitos bens (Gênesis 15.13, 14); essa mesma promessa foi cumprida no livro de Êxodo, um episódio essencial para a formação da identidade do povo de Israel. O mesmo ocorre com a promessa de um cativeiro como consequência da desobediência (Deuteronômio – 2 Crônicas), a volta do cativeiro (Jeremias 25.11 – Esdras), e finalmente com a vinda do Messias prometido. A Bíblia inteira expressa que Deus é fiel aos Seus propósitos e à Sua palavra; em suma, Deus é fiel a Si mesmo. Isso pode soar estranho para alguns, mas essa é uma parte essencial do Evangelho. A fidelidade de Deus associada com Sua graça, bondade e misericórdia foi exatamente o que O levou a executar o plano de salvação que transformou pecadores, como nós, em Seus filhos. É por amor que Ele estende Suas promessas a nós, nos incluindo no Seu plano, e por Sua fidelidade podemos confiar em cada uma delas.
Deus é fiel. E eu?
O conceito de fidelidade se manifesta perfeitamente em Deus. Ele é o único que pode ser eternamente e perfeitamente leal. Como cristãos, também somos chamados a exercer a fidelidade a Deus e à Sua palavra (que se reflete em obediência), ainda que de maneira imperfeita. Vemos isso claramente no exemplo de Paulo a Timóteo (2 Timóteo 1.2), onde o apóstolo o chama para compartilhar dos seus sofrimentos pelo Evangelho, servindo como um soldado serve fielmente ao seu comandante. Uma nomenclatura similar é usada por Jesus em diversas parábolas (o servo fiel de Mateus 25.14-30 e Lucas 12.35-48), o que deixa bem claro que fidelidade é algo esperado do cristão. Mas como isso se dá na prática? Ainda em 2 Timóteo, Paulo dá algumas dicas: em meio às exortações à fidelidade, vemos trechos como: “Quanto ao que lhe foi confiado, guarde-o por meio do Espírito Santo que habita em nós” (2 Timóteo 1.14) e “Portanto, você, meu filho, fortifique-se na graça que há em Cristo Jesus” (2 Timóteo 2.1). Indiretamente, vemos que a fidelidade de Timóteo (e a nossa) só poderia ser mantida pela ação do próprio Deus, por meio do Espírito, e que, apesar de haver esforço envolvido, essa fidelidade era baseada na graça. De maneira mais explícita, o autor de Hebreus incentiva seus destinatários à fidelidade com o versículo:
“Apeguemo-nos com firmeza à esperança que professamos,
pois aquele que prometeu é fiel.”
(Hebreus 10.23)
Assim, nossa fidelidade só é possível por meio da perfeita fidelidade do próprio Deus, e a confiança nessa fidelidade nos ajuda a sermos fiéis ao nosso mestre em cada situação. Por natureza, nossa fidelidade é escrava dos nossos próprios desejos (Romanos 1-3), mas a obra salvadora de Deus e a habitação do Espírito em nosso coração nos dá vida e a capacidade de sermos fiéis a Deus, por meio da transformação que Ele opera em nós (1 Coríntios 6.11). Nesse contexto, fidelidade não implica em uma vida sem pecado, mas em uma vida de arrependimento contínuo e dependência da graça (1 João 1.8, 9), confiando que a promessa de que Deus irá nos transformar pouco a pouco à imagem do seu Filho irá se cumprir porque Deus é fiel (Filipenses 1.6). É exatamente essa fidelidade que levou à nossa justificação, que hoje nos santifica, e que nos guardará perfeitamente até a glorificação final (Romanos 8.28-30; 1 Tessalonicenses 5.23, 24).
A Bíblia nos mostra que o verdadeiro discípulo é alguém fiel ao mestre em todos os momentos, mas Ela nunca coloca a nossa fidelidade como algo condicional ao nosso próprio esforço. Fidelidade só pode ser exercida pela graça, na dependência do Espírito; ela é impossível ao homem não-regenerado. Mas é justamente nesse fato que podemos nos alegrar: somos alvos das promessas de um Deus fiel, que nos dá do seu Espírito gratuitamente, e que garante a Sua obra em nós! Porque Deus é fiel, nós também podemos ser.
Editorial de Petrônio Nogueira
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